Hiperficção

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Hiperficção é a «narrativa desenvolvida segundo uma estrutura em labirinto, assente na noção de hipertexto, ou texto a três dimensões no hiperespaço, em que a intervenção do leitor vai determinar um percurso de leitura único que não esgota a totalidade dos percursos possíveis no campo de leitura».[1]

Ao lado da «poesia animada por computador» e da «literatura generativa», a hiperficção faz parte da designada «literatura gerada por computador».

A ficção interactiva[editar | editar código-fonte]

A obra do francês Raymond Queneau, Cent Mille Milliards de Poèmes,[2] representa o primeiro marco do que se denominou ficção interactiva.

O processo de leitura do texto baseia-se no princípio combinatório: os textos (poemas) são construídos pelo leitor à medida que vai juntando vários cartões, à partida separados, contendo cada um deles um verso alexandrino.

Em 1967, Queneau publica Un conte à votre façon,[3] outro tipo de narrativa interactiva que irá servir de modelo a produções que lhe sucederão. É uma espécie de conto para crianças, onde o leitor deve, para progredir na história, escolher sempre um de dois parágrafos propostos.

Seguiram-se outros modelos, nomeadamente as narrativas interactivas inglesas designadas como Fighting Fantasy ou mais vulgarmente conhecidas por «Livro de que se é o herói», ou ainda «Livros com capítulos de que se é autor».

Steve Jackson e Ian Livingstone são os autores mais conhecidos deste tipo de obras.

Composition n.° 1, de Marc Saporta,[4] é outro clássico de ficção interactiva. Trata-se de um livro em folhas separadas que o leitor lerá por uma ordem aleatória.

Com o desenvolvimento da informática, as narrativas interactivas começaram a surgir também em suporte digital.

Em 1972, William Crowther, informático e geólogo americano, desenvolve um jogo de ficção interactivo em suporte digital, Adventure,[5] para divertimento da filha.

Com uma interface onde apenas aparecia um texto descritivo em fundo preto, o programa consistia num jogo de «faz de conta» em que o leitor se lançava à descoberta de uma gruta.

Passando de mão e, mão, de disquete em disquete, o jogo depressa chegaria a um grande número de utilizadores através da rede ARPANET que, entretanto, dava os primeiros passos.

Embora muito limitado, desde logo pelas restrições textuais, e pela reduzida interactividade, já que as acções do leitor se limitavam a comandos do tipo «ver», «ouvir»; «apanhar», o jogo apresentava vantagens relativamente às ficções interactivas em papel.

Não havia qualquer possibilidade de fazer batota: o programa não permitia que se acedesse de antemão a alternativas de uma bifurcação, para ver qual delas seria melhor. O leitor tinha de ser muito mais activo; nada acontecia se este não tomasse a iniciativa de escrever; a motivação e o desafio aumentavam perante a presença de um interlocutor electrónico, que, embora invisível, se revelava bastante «inteligente».

Com a rápida evolução da informática, as ficções interactivas em computador depressa cairiam no esquecimento:

Enquanto jogos, foram rapidamente ultrapassadas pelos jogos de vídeo e pelo multimédia, muito mais atractivos por incorporarem imagem e som;
Enquanto ficção, deram lugar a uma forma de narrativa que a tecnologia hipertexto tornou possível: a hiperficção.

O surgimento dos hipertextos ficcionais[editar | editar código-fonte]

O aparecimento dos computadores pessoais e o desenvolvimento de programas específicos trouxeram novas potencialidades à narrativa.

Em meados dos anos 1980, Michael Joyce, coordenador do Centro de Narrativa e Tecnologia do Jackson Community College e J. Bolter, autor do livro Turing´s Man,[6][7] criaram um programa, desenvolvido pela Apple Macintosh, a que deram o nome de Storyspace. Este software, integrando já a tecnologia hipertexto, permite unir textos ou fragmentos de textos conforme o autor desejasse.

Um dos primeiros e o mais conhecido dos hipertextos ficcionais é Afternoon, de Michael Joyce, criado e difundido nos Estados Unidos entre 1986 e 1992. Esta hiperficção é composta por 539 páginas-ecrã independentes, relacionadas por 950 ligações e relata (se é que é possível relatá-la, como o era nos romances tradicionais) a história de Peter, um escritor técnico, que procura descobrir se as vítimas do acidente de automóvel que testemunhou naquela manhã, quando se dirigia para o trabalho, são o seu filho e a sua ex-mulher. Mas mais importante que a intriga é a forma como o leitor é "obrigado" a percorrê-la. Desde logo, vê-se impossibilitado de seguir um percurso linear sob pena de se ver envolvido numa história inacabada. Para que haja um fio condutor, o leitor tem de escolher entre vários caminhos propostos, responder a questões ou clicar em palavras-chave. Se por algum motivo se depara com uma página já consultada, as opções propostas são diferentes das que observou na primeira visita.

A expansão[editar | editar código-fonte]

No início da década de 1990, beneficiando do desenvolvimento da edição electrónica, trazida pela emergência do multimédia e da Internet, verificou-se um maior interesse e um grande aumento das hiperficções.

Este novo «género literário» já é incluído por universidades americanas e europeias nos seus programas e cursos de literatura.

São os casos da Université de Paris 8, onde os alunos são iniciados nesta forma de escrita; da Universidade Federal de Santa Catarina no Brasil; ou da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, onde funciona o Centro de Estudos de Texto Informático e Ciberliteratura.

Algumas obras mais importantes[editar | editar código-fonte]

Além do clássico Afternon a Story, de Joyce,[8] podemos referir como obras de hiperficção:

  • Moulthrop, Stuart. Victory Garden (1987), produzido em Storyspace e publicado pela Eastgate Systems.
  • Cooper, Douglas. Delirium (1994), publicado pela Tim Warner.
  • Arnold, Mary-Kim. Lust (1994), produzido em Storyspace e publicado pela Easgate Systems.
  • Malloy, Judy. Love One (1995) publicado pela Easgate Systems.
  • Guyer, Carolyn, Quibbling (sem data), produzido em Storyspace e publicado pela Easgate Systems.
  • Douglas, Yellowless, I Have Said Nothing (sem data), publicado pela Easgate Systems.
  • Lafaille, J. M.. Aleia Jacta Est, França.
  • Lafaille, J. M.. Fragments d’une Histoire, França.
  • Brandenbourger, Anne-Cécile. Apparitions Inquiétantes ou Anacoluthe.
  • Jean-François. Le Nœud, que começou a ser produzido em 1999, no site Aamnesie.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Fontes[editar | editar código-fonte]

Barbosa, Pedro. A Renovação do Experimentalismo Literário na Literatura Gerada por Computador

Outra[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

Notas

  1. Barbosa, Pedro. ‘’A Renovação do Experimentalismo Literário na Literatura Gerada por Computador’’. Ver link na bibliografia.
  2. Ver também em [[:en:Hundred Thousand Billion Poems|]]
  3. Ver aqui (em francês).
  4. Cf. aqui (em inglês).
  5. Cf. aqui (em inglês).
  6. Sobre o Homem de Turing, ver este texto de Fernando Lisboa
  7. Sobre Turing ver Alan Turing.
  8. Que, servindo-se da narrativa El Jardín de Senderos que se Bifurca (em espanhol), de Jorge Luis Borges, o tornou mais interactivo, transformando-o em hipertexto