Os Antecedentes da Teoria do Cinema

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Antes do surgimento da teoria do cinema, existiam vários debates ocorrendo acerca de seus parâmetros estéticos, da especificidade do meio — quais propriedades elevavam-no ao status de arte e diferenciavam-no de outros meios, segundo Noël Carroll [1] —, os gêneros, entre outros, sempre baseado na tríade filosófica da estética, da ética e da lógica. Por esse motivo, Robert Stam afirma que a teoria do cinema é palimpséstica; ou seja, cumulativa de várias teorias sendo construídas ao longo do tempo acerca da área e também de outras áreas da arte, como a literatura e o teatro, de caráter não-excludente.

Por exemplo, a discussão a respeito da estética do cinema deriva da teoria estética como um todo, datada do século XVIIII, buscando responder questões filosóficas a respeito da arte, como o que a torna bela e se essa beleza é objetiva ou subjetiva. No cinema, as questões também são voltadas para seu status de arte — poderiam todos os filmes serem considerados arte, ou seria essa posição restrita a poucos filmes? No segundo caso, quais aspectos os qualificariam como arte? São essas perguntas que a estética busca responder.

Se por um lado, a abordagem pela ótica da especificidade do meio supunha que cada forma de arte tem normas e elementos específicos que delimitam suas possibilidades de expressão, do outro lado existiam as comparações entre essas formas. Por exemplo, a literatura era frequentemente tida como uma forma artística superior ao cinema, dados os seus milhares de anos de produção e desenvolvimento de linguagem artística, sendo adequada para a expressão de pensamentos e sentimentos. Em contrapartida, Stam afirma que devido aos variados recursos do audiovisual, a linguagem do cinema poderia ser ainda mais complexa que a da literatura por ser capaz de transmitir uma alta densidade de informações em seus planos.

Mais uma teoria do cinema era a herança literária da classificação das obras em gêneros distintos: comédia, tragédia, etc. O agrupamento indiscriminado de gêneros por temática é, segundo Stam, “o critério mais débil”, visto que um tema pode ser retratado de diferentes formas. Um dos exemplos citados por ele é a temática do filme hollywoodiano sobre hollywood, sendo retratada como um melodrama em Nasce uma Estrela, uma comédia em Show People, um musical em Cantando na Chuva, e assim por diante.

Outra discussão herdada foi a do realismo artístico, que tem origem na filosofia, mas se concretiza como um movimento literário oposto aos temas neoclassicistas e românticos, buscando uma representação acurada do mundo contemporâneo. Stam afirma que, apesar de exibir uma modernidade superficial, o cinema possui as aspirações miméticas do realismo, possuindo uma dicotomia realista-modernista. Entretanto, em algumas culturas é perceptível o rompimento da arte com o realismo, a exemplo do teatro milenar indiano, que está pouco atrelado à coerência na construção dos personagens e às narrativas lineares — o que não desvaloriza o realismo ocidental, mas apenas demonstra as diversas possibilidades de escolhas estéticas que podem ser feitas. Por exemplo, o carnavalesco, como analisado por Bakhtin, constrói uma estética anti-hegemônica, “revelando o grotesco dos poderosos e a beleza latente do vulgar”, como citado por Stam[2]. Neste caso, a brincadeira do carnaval subverte, por meio da suspensão de normas sociais e hierarquias, o conceito de realismo relativo à experiência humana, cuja feiura tende a ser reduzida apenas ao sofrimento.

Robert Stam reflete também sobre o cinema como instrumento aliado ao nacionalismo e ao colonialismo no século XX, visto que o advento do cinema coincidiu com o ápice do imperialismo europeu. Os maiores produtores cinematográficos — como França, Estados Unidos, Alemanha e Grã-Bretanha — eram também grande impérios coloniais, isso permitia que eles contassem a história do ponto de vista do vencedor, em outras palavras: propaganda; tendo em vista a enorme capacidade de difusão em massa característica do cinema. As primeiras projeções dos irmãos Lumière aconteceram, inclusive, em momentos imediatos após ações imperialistas históricas, como o massacre do povo indígena Sioux nos Estados Unidos em 1890. Isso gerava não apenas um senso de identificação nas populações europeias, mas também um efeito alienador nas populações colonizadas a partir do fato de que a mentalidade europeia que os oprimia passava a se estabelecer ainda mais como narrativa hegemônica. Stam ressalta que o cinema também se trata de um jogo político ao afirmar que a tecnologia cinematográfica — bem como a maior parte do desenvolvimento tecnológico que hoje é considerado essencial — é erroneamente percebida como algo exclusivo do Ocidente. Da mesma forma, o cinema é considerado de forma equivocada como algo distintamente ocidental, com Hollywood no centro da fama mundial apesar de ser responsável por apenas uma fração de todas as produções cinematográficas do mundo, tendo sido ultrapassada pelo cinema indiano, por exemplo, que produz cerca de mil longa-metragens anuais. Em outras palavras, o cinema considerado “de terceiro mundo” produz a maior parte dos longa-metragens mundias, mas é marginalizado pela dominância norte-americana e europeia. “A riqueza da Europa é literalmente a criação do terceiro-mundo”, afirma Fanon (1961 apud STAM, 2003)[3].

  1. CARROLL, Nöel (1996). Theorizing the Moving Image. [S.l.]: Cambridge University Press. ISBN 978-0521466073 
  2. STAM, Robert (2003). Introdução à Teoria do Cinema. Campinas: Papirus Editora. p. 32. ISBN 978-8530807320 
  3. STAM, Robert (2003). Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus. p. 35. ISBN 978-8530807320