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Processamento tubular no néfron

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O processamento tubular no néfron é uma das funções mais importantes desenvolvidas pelos rins. De maneira geral, refere-se aos mecanismos responsáveis pela reabsorção e secreção tubular.

Túbulo Proximal[editar | editar código-fonte]

O Túbulo Proximal (TP) é o responsável pela maior parte da recuperação de solutos e água do néfron. É constituído por um epitélio "leaky", ou seja, tem alta capacidade de transporte (em especial de água), mas não consegue sustentar grande diferença de concentração para a mesma substância; considera-se a absorção como isosmótica. A membrana apical de TP possui extensa borda em escova, e uma característica ultraestrutural proeminente é a grande presença de mitocôndrias. O TCP pode ser dividido em três porções: S1 (os 20 a 25% mais próximos do glomérulo), S2 e S3, com progressiva diminuição da complexidade celular. Outra possível divisão de TP é a em Túbulo Contorcido Proximal e Túbulo Reto Proximal, sendo que a divisão seria na metade de S2. Contudo, é comum a utilização de Túbulo Contorcido Proximal no lugar de Túbulo Proximal, não havendo consenso na nomenclatura.

  • Água: reabsorção de 60% da água filtrada - aquaporina 1 e via paracelular
  • Sódio: reabsorção de 60% do Na+ filtrado - gradiente gerado pela Na+ / K+ ATPase basolateral.
  • Bicarbonato: reabsorção de 90% do bicarbonato filtrado. Trocador Na+ / H+ apical leva a formação de H2CO3, que é metabolizado pela anidrase carbônica da borda em escova com a formação de H2O e CO2, que entra na célula por difusão. No citoplasma é reconvertido pela anidrase carbônica citoplasmática, e dissocia-se em bicarbonato, que sai pelo co-transportador Na+ / HCO3- basolateral. O processo é saturável, de modo que concentrações de bicarbonato plasmáticas > 24-26 levam a excreção urinária de bicarbonato.
  • Cloreto: inicialmente concentração aumenta, compensando a reabsorção de bicarbonato. Nos segmentos finais do túbulo proximal, começa a ser reabsorvido através de troca apical com formiato (que se junta com um próton, volta pra célula por difusão e é reciclado). A saída basocelular ocorre por cotransporte K+ / Cl -.
  • Glicose: praticamente toda reabsorvida no túbulo proximal através de SGLTs (cotransportador Na+-glicose apical). O processo é saturável, levando a glicosúria quando a glicemia for > 180 a 200 mg/dL.
  • Cálcio: reabsorção de 60-70% do cálcio filtrado. Difusão passiva paracelular. O túbulo proximal produz 1 alfa-hidroxilase, que converte calcidiol na forma ativa da vitamina D calcitriol; o PTH estimula a produção de 1-alfa-hidroxilase.
  • Fósforo: reabsorção de 85% do fósforo filtrado, através de cotransportador Na+ / Fosfato. O hormônio ósseo FGF23 se liga ao receptor FGFR1 e ao correceptor Klotho nas células tubulares proximais, suprimindo o cotransporte de sódio-fosfato e promovendo a excreção renal de fosfato. O PTH também suprime o cotransporte sódio-fosfato proximal.
  • Reabsorção de aminoácidos: diferentes classes de sistemas de transportadores, específicos para diferentes grupos de aminoácidos.
  • Endocitose absortiva de hormônios peptídicos (e.g. insulina, GH), beta-2 microglublina e albumina, que são processadas nos lisossomos.
  • Secreção ácida:
    • Trocador Na+ / H+ apical leva a secreção luminal de prótons.
    • Titulação do tampão urinário NH3: a glutamina é metabolizada no túbulo proximal com formação de NH3 (processo modulável inversamente pela concentração intracelular de K+). O NH3 se difunde para o lúmen e aprisiona íons H+ na forma de NH4+. No hipoaldosteronismo, a hiperKalemia leva a aumento de potássio intracelular, que modula negativamente a amoniagênese e promove acidose tubular do tipo IV.
    • Titulação do tampão urinário Fosfato: O íon HPO42- filtrado aprisiona o H+ secretado na forma de H2PO4-. A maior parte do íon fosfato filtrado é reabsorvida pelo túbulo proximal, por meio de um processo de cotransporte acoplado ao sódio regulado pelo PTH.
    • Secreção de ácidos orgânicos: urato, succinato, cetoácidos, vários fármacos (penicilinas, cefalosporinas, salicilatos, oseltamivir). O processo pode ser inibido por probenecida.
  • Secreção de cátions orgânicos: dopamina, acetilcolina, epinefrina, norepinefrina, histamina, creatinina, cimetidina, trimetoprima. OBS: a competição de determinados fármacos (e.g. cimetidina) pode levar a diminuição da secreção de creatinina, levando a aumento espúrio no plasma.  
  • Secreção de fármacos mediado pelo transportador glicoproteína-P ATP-dependente: ciclosporina, digoxina, tacrolimos, vários quimioterápicos.[1]

S1[editar | editar código-fonte]

Principais transportadores de solutos apicais[editar | editar código-fonte]

  • NHE3 - Na+ / H+ exchanger 3, um trocador Na+ (para dentro da célula) / H+ (para fora da célula). Esse H+ transportado para a luz se liga a HCO3, formando H2CO3 (reação catalizada pela anidrase carbônica IV, presente na membrana apical), um ácido volátil que rapidamente se torna H2O e CO2. Esse CO2 atravessa a membrana apical via difusão passiva. Dali, pode passar diretamente para o interstício por difusão simples na membrana basolateral ou se ligar à H2O, formando outro H2CO3, que pela anidrase carbônica II presente no citosol é convertido a H+ e HCO3.
  • SGLT2 - Na+/Glucose linked transporter 2, um cotransportador Na+ / glicose0 de alto Tm (i.e. alta capacidade de transporte) e alto Km (i.e. baixa afinidade)
  • SLC1A1 - cotransportador 2 Na+ / H+ / aminoácido
  • SLC7A9 SLC3A1 - heterodímero trocador aminoácido+ ou cisteína0 (influxo) / aminoácido0 (efluxo)
  • SLC6A15 - cotransportador Na+ / aminoácido0 (exceto prolina)
  • SLC6A18 - cotransportador Na+ / glicina0
  • SLC6A19 - cotransportador Na+ / aminoácido0 (exceto prolina) - considerado o mais importante dos transportes apicais de aminoácidos.
  • SLC6A20 - cotransportador 2 Na+ / Cl / prolina ou iminoácido
  • SLC36A1 - cotransportador prolina ou alanina ou glicina ou iminoácido / H+
  • SLC36A2 - cotransportador prolina ou alanina ou glicina ou iminoácido / H+
  • SLC5A8 - cotransportador Na+ / monocarboxilato
  • SLC5A12 - cotransportador Na+ / monocarboxilato
  • SLC13A2 - cotransportador 3 Na+ / dicarboxilato2− ou tricarboxilato3−
  • URAT1 - trocador urato (influxo) / monocarboxilato (efluxo)
  • OAT4 - trocador urato (influxo) / dicarboxilato2− (efluxo)
  • Canais de potássio (não participam da reabsorção, inclusive secretam minimamente potássio para o lúmen)[2][3]

Alça de Henle[editar | editar código-fonte]

  • Ramo descendente delgado: alta permeabilidade a água (aquaporina 1 constitutivamente ativa). Reabsorção de água, dependente do gradiente de concentração na medula externa pelo mecanismo de multiplicação contracorrente.
  • Ramo ascendente delgado: praticamente impermeável a água. Reabsorção de solutos, dependente do gradiente de concentração na medula externa pelo mecanismo de multiplicação contracorrente.
  • Ramo ascendente espesso:
    • Cotransportador Na/K/2Cl apical (limitado pelo K+ luminal), inibido por furosemida. OBS: NH4+ pode substituir K+ nesse transportador.
    • Canal de K+ apical, que recicla o K+ luminal e promove a carga eletrostática necessária para reabsorção paracelular de cátions bivalentes.
    • Reabsorção paracelular de Mg2+.
    • Reabsorção paracelular de Ca2+. O receptor sensor de cálcio CaSR basocelular regula a absorção de NaCl no segmento ascendente espesso, indiretamente regulando a excreção de cálcio.
    • Canais de cloreto basolateral
    • Na+ / K+ ATPase basolateral
  • Geração do interstício medular hipertônico por meio de um processo conhecido como multiplicação contracorrente. OBS: a osmolalidade máxima do interstício medular também depende da reciclagem parcial da ureia no ducto coletor. [1]

Túbulo Contorcido Distal[editar | editar código-fonte]

  • Sódio: reabsorção de 5% do NaCl filtrado. Cotransportador sensível a tiazídico Na+ / Cl - apical. Canais de Cloreto basolateral e Na/K ATPase basolateral.
  • Cálcio: reabsorção de cálcio, inversamente relacionada a reabsorção de Na. É estimulada pelo PTH. Canal de Ca apical (TRPV5). Saída por trocador Na/Ca basolateral.
  • Magnésio: reabsorção dependente de TRPM6 e TRPM7.[1]

Ducto Coletor[editar | editar código-fonte]

  • Reabsorção de água: Aquaporina 2 apical (expressão dependente de Vasopressina, que atua sobre receptor basolateral V2), aquaporinas 3 e 4 basolaterais.
  • Células principais:
    • ENaC apical, com expressão celular ativada por aldosterona (através de receptor mineralocorticoide basolateral), e inibido por amilorida, trimetoprima e outras medicações.
    • Canais de K apicais.
  • Células intercaladas do tipo A: secreção de ácido e reabsorção de bicarbonato. Sensíveis a aldosterona (aumenta expressão de H+ ATPase apical).
  • Células intercaladas do tipo B: secreção de bicarbonato e reabsorção de ácido.

A reabsorção de sódio nas células do ducto coletor medular interno é inibida por peptídeos natriuréticos (atrial, renal).[1]

Processamento Tubular de Potássio[editar | editar código-fonte]

Os rins filtram 810 mmoles/dia de Potássio (K+) e excretam apenas 90 mmoles/dia. Isso não significa que os rins reabsorvem 720 mmoles/dia. Significa que o resultado final do processamento tubular é a recuperação de 720 mmoles/dia, sendo que são reabsorvidos 770 mmoles e secretados 50 mmoles.

A regulação fina das concentrações de K+ é importante pois, por ser o íon mais permeável nas membranas celulares, é em grande parte responsável por seu potencial. Excesso ou déficit de K+ perturba a excitabilidade das células do organismo, sendo que as mais relevantes afetadas são os neurônios e as células musculares (como as do coração). Além disso, os níveis de potássio estão intimamente ligados com distúrbios ácido-base. A hipocalemia (causada por exemplo por doença diarreica crônica, hiperaldosteronemismo, síndromes renais específicas, uso crônico de diuréticos espoliadores de potássio) pode levar a acidose metabólica, fraqueza e parestesia, paralisia intestinal, arritmias etc.[4] A hipercalemia (causada por exemplo por insuficiência renal severa, deficiência de aldosterona, insensitividade à aldosterona, morte celular severa, como hemólise ou lise tumoral) pode levar a paralisia muscular, vômitos e arritmias.[5][6]

Alça de Henle[editar | editar código-fonte]

A absorção de K+ na alça de Henle se dá no segmento espesso ascendente, em que há o transportador NKCC2 (cotransportador Na+ / K+ / 2 Cl). Parte do K+ que entra na célula por este transportador recircula por canais tipo ROMK para realimentar o transportador, e parte sai pela membrana basolateral por canais de K+ ou cotransportadores K+ / Cl.[7] A proporção que recircula e que é reabsorvido é de aproximadamente 50%/50%. A via paracelular também é relevante, sendo cátion-seletiva movida pela voltagem transepitelial positiva (de +8 a +15 mV). Lembrando que a região é impermeável à água, não havendo "solvent drag".

Como a furosemida inibe NKCC2 e zera a voltagem transepitelial no segmento espesso ascendente, ela acaba por inibir as vias transcelular e paracelular de reabsorção de K+ nesse segmento.

Túbulo Convoluto Distal[editar | editar código-fonte]

Nessa porção, começa a secreção de K+.

TCD1[editar | editar código-fonte]

Há pouca ou nenhuma secreção de K+ nessa porção, já que a voltagem transepitelial é próxima de 0. Mesmo assim, já há a expressão apical de canais tipo ROMK e cotransportadores de K+ / Cl (voltados para fora para da célula). Para recircular o K+ que entra pela Na+ / K+ ATPase, há canais de K+ basolaterais.

A presença dos cotransportadores de K+ / Cl (voltados para fora para da célula) explica o motivo pelo qual baixo Cl luminal causa aumento da secreção de potássio. Condições de aumento luminal de outro íon negativo, como sulfato, fosfato ou bicarbonato, são exemplos de situações que diminuem Cl luminal.[7]

TCD2[editar | editar código-fonte]

Ao longo de TCD2, a expressão de NCC declina e de ENaC sobe, sendo esta a primeira porção do Néfron Distal Sensitivo a Aldosterona (algo atestado pela presença de receptor de mineralocorticoide e pela enzima 11β-hidroxiesteroide desidrogenase II, que catalisa a conversão de cortisol à cortisona, muito menos ativa, permitindo que a ação do cortisol sobre o receptor de mineralocorticoide seja reduzida).[7] Há expressão apical de canais de potássio (ROMK1 e BK) e cotransportadores de K+ / Cl (voltados para fora para da célula), e canais de K+ basolaterais.

Regulação da secreção de potássio[editar | editar código-fonte]

4 fatores principais aumentam a secreção de potássio:

  • Aumento de Fluxo Tubular: Os canais BK, mencionados anteriormente, estão presentes em quase todos os segmentos do néfron, mas se destacam no néfron distal e no ducto coletor cortical, pois foram identificados como um dos mediadores da secreção de K+ induzida pelo aumento do fluxo tubular.[8] Funciona da seguinte maneira: o aumento do fluxo tubular muda a conformação da borda em escova, flexionando os cílios centrais das microvilosidades; já se observou que o dobramento desses cílios induz aumento da [Ca2+]intracelular de forma transitória; os canais BK são sensíveis à [Ca2+]intracelular, sendo que entram em estados mais ativos quando ela aumenta.[7] O aumento do aporte de Na+ e a lavagem luminal de K+ são outros mecanismos que induzem a secreção de potássio com o aumento de fluxo.[7]
  • Aumento de Na+ luminal: o aporte de Na+ luminal aumentado leva a maior incorporação de cargas positivas pelo ENaC, de modo que há estímulo eletrogênico para K+ "vazar" pela membrana apical pelos canais de potássio ali presentes.
  • Queda de Cl: A presença dos cotransportadores de K+/Cl (voltados para fora para da célula) explica o motivo pelo qual baixo Cl luminal causa aumento da secreção de potássio. Condições de aumento luminal de outro íon negativo, como sulfato, fosfato ou bicarbonato, são exemplos de situações que diminuem Cl luminal[7] (mais detalhes na seção "Ação da Acetazolamida sobre o potássio").

Referências

  1. a b c d Jameson, J. Larry, ed. (2018). Harrison's principles of internal medicine Twentieth edition ed. New York: McGraw-Hill Education 
  2. F.,, Boron, Walter; L.,, Boulpaep, Emile. Medical physiology : a cellular and molecular approach Updated second edition ed. Philadelphia, PA: [s.n.] ISBN 9781437717532. OCLC 756281854 
  3. Sodium-coupled Monocarboxylate Transporters in Normal Tissues and in Cancer [1]
  4. Kardalas, Efstratios; Paschou, Stavroula A; Anagnostis, Panagiotis; Muscogiuri, Giovanna; Siasos, Gerasimos; Vryonidou, Andromachi (14 de março de 2018). «Hypokalemia: a clinical update». Endocrine Connections. 7 (4): R135–R146. ISSN 2049-3614. PMC 5881435Acessível livremente. PMID 29540487. doi:10.1530/EC-18-0109 
  5. Simon, Leslie V.; Farrell, Mitchell W. (2018). «Hyperkalemia». Treasure Island (FL): StatPearls Publishing. PMID 29261936 
  6. «Hyperkalemia: Practice Essentials, Background, Pathophysiology». 18 de julho de 2018 
  7. a b c d e f Palmer, Biff F. (5 de junho de 2015). «Regulation of Potassium Homeostasis». Clinical Journal of the American Society of Nephrology : CJASN. 10 (6): 1050–1060. ISSN 1555-9041. PMC 4455213Acessível livremente. PMID 24721891. doi:10.2215/CJN.08580813 
  8. Welling, Paul A. (maio de 2013). «Regulation of Renal Potassium Secretion: Molecular Mechanisms». Seminars in Nephrology. 33 (3): 215–228. ISSN 0270-9295. doi:10.1016/j.semnephrol.2013.04.002