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Manuel Lopes Azevedo Fernandes (Chaves, 16 de dezembro de 1914 - Matosinhos, 21 de agosto de 2003) foi um médico psiquiatra, com a especialidade de Neuropsiquiatria, que se distinguiu não só como estudioso e investigador na Psiquiatria mas também como terapeuta e como formador na comunidade de médicos psiquiatras e de outros profissionais da saúde mental. No seu estudo e no seu trabalho Azevedo Fernandes manteve relações internacionais, sobretudo com consagrados especialistas alemães e também franceses, suíços e brasileiros e contribuiu para a sua divulgação, de forma independente e crítica. Publicou quatro livros e cerca de oitenta artigos científicos[1]. Foi membro da Deutsche Gesellschaft für Antropologie und Daseinanalytische Medizin Psychologie und Psychotherapie e da Gesellschaft Deutscher Naturforscher und Ärtze e membro honorário e didata da Société Internationale des Techniques d’Imagerie Mental Onirique; foi Diretor de Serviço do Hospital de Magalhães Lemos, no Porto[1].

Biografia[editar | editar código-fonte]

Azevedo Fernandes nasceu em Chaves, em 16 de dezembro de 1914. Frequentou os estudos liceais no Porto no Colégio Universal e concluiu o curso na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 1937. Estagiou em Lisboa, nos Hospitais de Stª Marta e Miguel Bombarda, nos serviços dos Professores Egas Moniz e Barahona Fernandes, onde obteve as especialidades de Neurologia e Psiquiatria[2]. Durante a Segunda Guerra Mundial foi mobilizado para a Madeira, como médico militar. Após a Guerra, trabalhou quase um ano como médico interino no Hospital Júlio de Mattos [3]. Nos anos seguintes, apesar do seu interesse pela Neurologia, foi-se aplicando mais na direção da Psicopatologia. Frequentou em 1954 a Clínica Universitária de Tubinga, dirigida pelo Prof Ernst Kretschmer, e em 1960 o Instituto Jung em Zurique, como bolseiro do Instituto de Alta Cultura[1]. No Porto, exerceu Medicina em vários centros (Hospital Conde de Ferreira, Casa de Saúde de Santa Catarina e Hospital de Magalhães Lemos), bem como em consultório particular[2]. Em vida, sob iniciativa dos psiquiatras Prof. António Leuschner e José Adriano Fernandes, foi homenageado em 1999 no Hospital Magalhães Lemos, cuja Biblioteca recebeu o seu nome[1].

No mesmo Hospital, em 2015, a propósito do centenário do seu nascimento, sob coordenação daqueles dois psiquiatras, foi-lhe prestada uma nova homenagem[2] e divulgado o seu último artigo científico [6], publicado postumamente sob revisão de José Adriano Fernandes. Em 1941 casou com Maria Irene Carneiro Queirós, também flaviense, de quem teve quatro filhos[2].

Aos 85 anos, Azevedo Fernandes resumia assim o seu percurso científico: Interessei-me bastante pela psicopatologia e pela psicoterapia. Na psicoterapia aproximei-me das correntes neo-analíticas, mas com um vínculo sempre mais firme às orientações de Ernst Kretschmer e J.H.Schultz (“psicoterapias organísmicas”), onde finalmente me fixei[4].

Sobre Azevedo Fernandes, afirmou o Prof Diogo Furtado: Os seus trabalhos evidenciavam uma profunda cultura filosófica e psiquiátrica e um intenso sentimento de simpatia pelo doente, traduzido num constante desejo de lhe ser útil [12].

Seleção das suas publicações científicas[editar | editar código-fonte]

O que escrevo é deduzido da prática e nisso fui aplicado, pois se não o fora considerava-me vil. Tenho desprezo por todos os profissionais desleixados. De resto, como profissional me fiquei; não fui um investigador [24].

Em A Luz Azul (1953) Azevedo Fernandes descreve um caso de cura pela técnica de sonho acordado, estabelecendo paralelismos entre aspetos dos sucessivos tratamentos e as personagens e ambientes de um conto tradicional dos Irmãos Grimm com aquele título (original: Das Blaue Licht). Interessam-nos estes contos na medida em que eles pertencem à grande massa e vivem intimamente misturados com a tradição. As lendas, contos e referências mitológicas surgem nos sonhos terapêuticos, afirmando a existência de um inconsciente onde caberão motivos que jamais terão sido vividos ou experimentados por nós. É aqui que se afirma o inconsciente coletivo de C.G.Jung, de latitude muito mais ampla que o inconsciente pessoal de Freud [7].

Do estágio em Tübingen, Azevedo Fernandes descreveu num extenso relatório (129 títulos bibliográficos), dividido em 24 temas, a Psicoterápia de Ernst Kretschmer, explicitando o pensamento deste em comparação com vários outros autores intervenientes e considerou que Kretschmer partiu da psicopatologia para uma psicoterapia poli dimensional, aproveitando as várias escolas na medida da sua oportunidade e interesse [8]. E porque fazer psicoterapia é ensinar o homem a viver [9], Azevedo Fernandes extrai dos estudos de Kretschmer uma orientação médica poli dimensional mas precisa na abordagem às neuroses: 1)esclarecimento polivalente e estratificado do conflito atual; 2) retraimento sobre exclusivismos doutrinários; 3) advertência do perigo em esmiuçar a análise; 4) validade do diálogo socrático, que podemos homologar ao moderno diálogo terapêutico; 5) unificar a personalidade consigo própria e com os seus alvos de valor vital [9].

Em Sobre o Arquétipo do Herói (1963) Azevedo Fernandes lembra que

o homem neurótico apresenta situações e problemas que excedem em larga medida as capacidades compensadoras da (sua) consciência.

As suas inibições, complexos, respostas e ações falhadas e tudo o mais que o descompensa no seu poli pragmatismo bio psíquico, mais não é que um desconhecimento tácito das suas forças complementadoras internas.

O herói, através de todos os tempos, é a personificação da individualidade, como forma de superação dos valores comuns. É um dos fatores centrais da análise na infância e na juventude. A sua manifestação no adulto, em sonhos, realizações ou fantasias de forte exuberância, significa desajustamento, imaturidade ou regressão; é, no entanto, um valor de larga promissão para a cura [15].

Na sua obra Ergoterapia (1964), Azevedo Fernandes, na linha do especialista dessa área Hermann Simon (1929), opõe à promiscuidade de vida dos manicómios de outrora, uma vida sadia, harmónica e humanizada em amplo sentido, nos Hospitais psiquiátricos, com vida e ritmo ergoterapêuticos [5]. Defende a utilidade dos trabalhos de campo para os doentes mentais: como exercício físico melhoram todas as funções, cultivam o método, a ordem e conferem responsabilidades, melhoram a orientação no tempo e no espaço, opõem a vida no campo e a realidade chocante e impositiva da natureza à vida hospitalar e ao irrealismo dos delírios, contribuem para cultivar o sentido de autoridade e a tendência para o doente sentir que é útil para os sãos e com eles faz jogar os seus esforços [5].


No livro Psicoterápia – Técnica e Clínica (1961) Azevedo Fernandes descreve a caracterização das neuroses feita, desde Freud, por vários autores, e, por outro lado, apresenta a sua própria experiência, analisando os dados e a estatística de 508 casos de neuroses tratados de 1949 a 1960 na sua clínica particular. O autor detalha para cada caso a somatização, isto é a expressão orgânica do sofrer psíquico [13]. A expressão somática reflete-se sobretudo no coração, seguido da pele e das manifestações motoras. Em quase 40% dos doentes, verificava-se angústia, com um mínimo na neurose esquizoide e um máximo na neurose depressiva [13]. Escrupuloso, Azevedo Fernandes escreverá 7 anos depois: parece que os psicopatologistas estão a cometer inflação no que toca à angústia, esquecendo que muitas dezenas de designações referentes a conceitos bem delimitados servem de etiqueta a sentimentos, impulsos e instintos [25] e, por isso, admite que aquela percentagem pode ter sido excessiva dada a condescendência que tomei para com algumas designações dos doentes [25]. No livro Psicoterápia- Técnica e Clínica, Azevedo Fernandes resume quase vinte definições da neurose numa frase simples: o que na neurose há de mais primário e mais acessível é a perda relativa de individualidade [13]. Prefere entre os métodos terapêuticos, que descreve em detalhe, o sonho acordado dirigido de Desoille, o treino de Schultz, a associação livre, e de Kretschmer a análise breve dirigida e a hipnose ativa fracionada [13].

No livro Neurose e Cura de Relaxamento (1968), Azevedo Fernandes avisa que o neurótico pode comportar-se como pessoa normal, os seus sintomas não valem como achados fenomenológicos puros; há que encontrar as linhas de fissura da personalidade, o que só se consegue em estudo psicobiográfico [25]. São possíveis sintomas, que o autor comenta em detalhe: a angústia, a tristeza, tomar a parte pelo todo (ou desejo de absoluto ou lei do tudo ou nada), a impossibilidade de confrontar e conciliar situações e valores antinómicos, o medo ao risco, a redução a coisa, a dissociação ou desunião intrapsíquica, a falência da situação Eu-Nós, a fuga à realidade, a intelectualização forçada, a incapacidade de retirada, a fantasia torpe, o estorvo na vida sexual, as alterações de ritmo, a falta de mobilidade na história do acontecido e no devir, a intemperança na reação à dor e ao prazer, a anulação, sentimentos de desvalor e complexos, hábitos molestos, regressão, alterações na energia expressa das funções psíquicas e na ingenuidade do acontecer orgânico – sendo que vários destes sintomas detalhados são de certo modo sobreponíveis [25]. Na segunda parte do livro, Azevedo Fernandes descreve técnicas de cura, com destaque no relaxamento de J.H. Schultz e na psicoterapia aplicada a grandes ocorrências (insónia, cefaleias, patologia sexual e alcoolismo) [25].

Em 1992, Azevedo Fernandes destaca em Ordem e Caos em psicopatologia e psicoterapia / bionomia e anti bionomia : no adoecer neurótico é patente a anti bionomia funcional psicofísica; para intervir psicoterapicamente na neurose temos que procurar seguir ao longo do que é congénito, predeterminado e não livre, daquilo que está de acordo com as leis da vida, incluindo fases evolutivas, alvos de valor, programas e ambientação -- ou seja, seguir o que é bionómico [26]. Na sua última obra, A Psicoterapia Autogénica no Contexto da Psicoterapia Organísmica (2003, publicação póstuma em 2015), Azevedo Fernandes insiste: a doença está no orgânico ou muito aderente ao orgânico [30] e, por isso recomenda que os terapeutas desta psicoterapia não podem arredar-se de vigiar o organismo na sua totalidade. As forças físicas deverão ser promovidas a par das forças psíquicas [30].

Em 1987, Azevedo Fernandes publica Psicoterapias combinadas e sua convergência na arte, destacando-se comunicação e sonho acordado -- um longo estudo comparado de mais de 40 autores, na maioria alemães, de diversas abordagens e técnicas psicoterápicas [24]. Focando em particular 5 autores (Schultz-Hencke, Wyss, Jung, Dürk e Wolberg), Azevedo Fernandes recorre, para cada um, à representação nos vértices de um quadrado de valores de toque psicológico, de forma que cada quadrado se reporta a uma só escola, embora todos os quadrados pelos vértices possam inculcar posições dinâmicas sobreponíveis [24]. A descrição detalhada é completada com este esquema [24].

Em Comunicação e Ajuda, (1977), Azevedo Fernandes sublinha que a comunicação humana, com ou sem fins terapêuticos, implica muitas regras e não é uma prática para diletantes, exige persistente formação e maturidade da personalidade. Nestas psicoterapias de diálogo, Azevedo Fernandes destaca as terapêuticas não diretivas, o diálogo dirigido deve começar onde o outro está internamente e usarmos da perspicácia que nos permita conhecer os fatores externos que levam ao “processo intrapsíquico” que desencadeia a “crise” e depois conhecer a “capacidade de carga” ou suporte da mente de cada um; Azevedo Fernandes avisa, por isso, que começar onde nós estamos e não onde o outro está, é negativar um êxito, quando não é mesmo agravar uma situação. Nesse sentido, também avisa contra a erudição, a pior arma do orientador quando a utiliza para teorizar e dogmatizar, colocando-se onde o outro não está [4]. Nesta obra, o autor lamenta que a psiquiatria de então se vá degradando em “saber pouco comunicante” com as ciências médicas em geral e com a cultura humanística que de longe a vinha inspirando; aponta o risco de um certo hermetismo cultural metapsicológico que origina doutrinas e subdoutrinas, escolas cujos enfeudados são como pares de namorados descuidados e desatentos ao que à sua volta se passa [4]. Este aviso já o tinha feito Azevedo Fernandes 16 anos antes: em todas as múltiplas correntes da psicologia terapêutica há verdades mais ou menos provisórias, mas nada de definitivo [13]. E voltará a referir-se, em 1962, aos grandes comprometimentos das correntes psicoterápicas de então: de um lado, aproximação inconsciente com a ciência pura, de outro busca e aceitação de temas básicos do pensamento filosófico [14]. Sem desvalorizar o que de válido reconhece em postulados dessas escolas, Azevedo Fernandes afirma que o mais válido nos atos médicos da psiquiatria é a comunicação e ajuda. O diálogo é algo mais que uma troca de pensamentos e sentimentos ou do que a expressão espontânea de desejos, impressões e pontos de vista; ele implica “comutação” na esfera dos sentimentos, que só se consegue com “empatia”, vivenciando a situação do outro, do ajudado. Empatia passa a ser aceitação total [4]. O médico que cura psicologicamente não é o erudito na busca das últimas novidades que sempre julga saber acrescentar aos seus conhecimentos anteriores. Ele tem que comparticipar na harmonização de um individuo doente com a sua própria problemática [11].

Fazemos confrontações menos arrojadas e poucas interpretações. Resumimos muitas vezes mas só a expressão anterior, o que mais parece uma resposta em espelho que abrange a totalidade do conceito mas em termos diferentes. Os silêncios são permitidos. Estão implícitos: encorajamento, suporte e tranquilização. Não se negam perguntas sondagem [4].

Nesse diálogo, pode ter importância ter em conta o livro aberto que é a alma infantil, onde brotam as situações afetivas de toda a ordem e onde o adulto se pode rever para se desanquilozar do estatismo emocional para que tende. Na criança estão em permanente caldeamento a fábula, a injustiça, a agressão, a esperança e o amor; vivendo com as crianças e para as crianças revivemos a criança que nós fomos e atualizamos valores e energias que tendiam para a degradação [4]. A criança, a partir de certa fase da sua evolução, tem uma aptidão especial para a fantasia que mesmo confunde com a realidade. É a esta função interna, marcadamente imaginativa, que vai buscar padrões seguros com que há de orientar a sua vida futura [7]. As forças dinâmicas que presidem no desenvolvimento na primeira infância podem fazer surgir problemas e crises, diferem qualitativamente e quantitativamente das valências do adulto, mas harmonizam-se e congregam-se no sentido de se efetivarem como pertenças do adulto [10]. A vida é uma trajetória de crises e problemas, que são outros tantos valores a aproveitar, assim os adultos estejam à altura de o fazer [10].

Em Comunicação – Psicoterápia (1978), Azevedo Fernandes apresenta matéria informativa essencial para os Cursos de Comunicação que vinha ministrando. Relaciona a Comunicação com aspetos da posição de autores tão diversos como Froelich e Bishop, Wilfried Weber, Ruth Bang, Carl Rogers, Reinhard Tausch, Dieter Wyss, Hans-Jürgen Walter e Hans Thomae. Deles recolhe ensinamentos úteis que expõe em detalhe mas, desde logo, delimita o campo de ação daqueles Cursos: a comunicação, tal como a venho ensinando, não é uma psicoterapia no verdadeiro sentido, dado que se apoia na tecnologia da permuta relacional e não no alicerçamento da reestruturação. É mais uma técnica que uma doutrina; é menos promoção de valores do que aproveitamento de aptidões. A terapêutica é paralela, é adicional. A comunicação é tão válida para o doente como para a família; tão válida para o depressivo como para o delirante, o ansioso, o mutilado ou o afásico [16].

As regras da comunicação subjetiva interpessoal puderam fomentar-se por mérito e esforço de analistas, neo-analistas, behaviouristas e rogerianos; estes últimos, mais eficientes com a terapia mais centrada no cliente do que na doença, embora pareçam não ir muito mais além da resolução do conflito individual atual e da “limagem” da personalidade em desajuste. Em profundidade, as outras terapias poderão ser mais penetradoras na psique e mais resolutivas na eficiência pontual -- porém menos respeitadoras do programa individual talhado pela pessoa. A qualidade do terapeuta é talvez de maior valia do que a boa escolha do método [18].

Azevedo Fernandes reforçará em 1987 a importância da comunicação: não compreendo a vida de um hospital psiquiátrico moderno sem que todos os seus servidores aprendam e pratiquem de forma ininterrupta a comunicação, embora usando os métodos ainda precários de que sabemos dispor [24].

Na comunicação, quem manda é o outro. Isto não invalida que tenhamos nós, os orientadores, uma sequência (não rígida) de estruturação, que se pode esquematizar: 1) Motivo dominante que levou o cliente a procurar-nos;2) Ocorrências dos últimos dias; 3) Processo intrapsíquico e capacidade de carga; 4) Ambiente socio psicológico que o rodeia e que o perturbou, incluindo a cronologia desta perturbação; 5) Que mais sabe dizer da sua vida e da sua constituição caracterológica? [16]. Se esta estruturação de inspiração biográfica se mostrar esgotada, pode ter cabimento aproveitar as temáticas e técnicas do Dasein – aqui descritas em detalhe a partir da obra de Thomae [16].


Atento a áreas culturais diversas, Azevedo Fernandes interessou-se pela poesia de Teixeira de Pascoaes (“Regresso ao Paraíso”) e de Eugénio de Andrade (“Sagramor”), descrevendo em Individuação e Arte Poética (1980) um estudo junguiano dessas obras. Caracteriza a Individuação como a operação máxima da psicologia analítica empírica de Jung, realizável por vias naturais, no caldeamento proveitoso da vida, e por vias analíticas, mercê de intervenções totais ou parciais na psique do analisado [17]. A individuação é aconchego na introversão. A lucidez da sabedoria está lá como na última etapa do taoismo. É como que a entronização do espírito [18].

Mas, embora aquela obra de Pascoaes seja como que o luminoso caminho antecipado ou já vivido do homem que se individua [22], Azevedo Fernandes avisa: As poesias são como que antecipações criadoras, denunciando surpreendentemente os modos e caminhos da individuação, mas não têm validade como realização terapêutica autónoma. A individuação consegue-se pelo metódico caminhar e não pela iluminação antecipada do caminho, nem tão pouco pelo relato memorizado das peripécias do percurso [17].

Outra obra literária bem diferente, “O Pato Bravo” de Ibsen, serve aos autores Adriano Fernandes e Azevedo Fernandes, em Comunicação familiar em crise, vista numa peça de Ibsen (1983), como exemplo de análise psicológica fundada no conceito de enfocação de Gendlin, aplicando a algumas das personagens as seis etapas que caracterizam este método psicoterapêutico [19].

Descobrindo em 1973 Dieter Wyss, a partir do seu livro “Beziehung und Gestalt” (Relação e Forma), Azevedo Fernandes estudou profundamente as sucessivas obras daquele médico e professor alemão de Würzburg e, a partir de 1974, divulgou o seu conhecimento em Portugal [20], [21] e [22]. O estudo e a divulgação que fez não foram simples decalque de Wyss, antes Azevedo Fernandes manteve sempre a sua própria visão abrangente sobre os grandes especialistas que estudou. Qual das muitas doutrinas, ditas dinâmicas, a adoptar? Por ordem de interesses, direi que C.G.Jung, Schultz-Hencke, H.S.Sullivan, F. Künkel mereceram a minha devotada aplicação. Quanto mais as estudava mais lhes reconhecia o empirismo dogmático. Decerto que tinham verdades e caminhos fundamentais, mas onde estava a ciência em nome da qual fiz a minha licenciatura? -- com a agravante (crítica) de eu ter começado pela neurologia! Os caminhos de H.Thomae sobre a personalidade quase me seduziram e a nossa correspondência foi encorajadora. Ele quantificou os valores dinâmicos da personalidade mas não nos diz como trata com a pessoa, assenta na biografia mas não nos ensina a verdadeira comunicação [20]. Wyss consegue a grande aliança entre psicologia, psicopatologia e psicoterapia. Esta última aparece sobretudo como comunicação simétrica, é troca, é dar e receber. A dinâmica psíquica segue ao longo de linhas gratificadoras, contudo indeterminadas e nada causalistas; é ao longo dessas linhas que atua a nossa ação psicoterápica e se estabelecem os caminhos da cura [20]. Dos vários contactos que Azevedo Fernandes manteve com Wyss, destacou-se o interesse deste em conhecer o estudo comparado das psicoterapias de Jung e de Wyss -- que Azevedo Fernandes publicou em 1985 e que, mercê da ajuda do amigo Dr Luís Filipe Saraiva, foi traduzido para inglês e depois para alemão com revisão do próprio Wyss [21]. Desse estudo só se pode dar aqui uma ou duas notas. Enquanto Jung, ao cabo de poucas sessões de anamnese, deixa que o terapeuta se distancie da história circunstanciada da vida do paciente para dar prioridade ao florescimento do mundo mítico-simbólico contido nos arquétipos, ou seja, mergulhar no inconsciente coletivo, Wyss como que sensibiliza o paciente para o “exame de consciência”, fazendo-o debruçar sobre as 200 proposições do Catálogo de Perguntas de Würzburg (WFK = Würzburger Fragenkatalog), que é caminho auxiliar muito promissor para atender na história individual [21]. No confronto entre Jung e Wyss, Azevedo Fernandes considera-os dois antecipadores, como que proféticos, para a solução dos problemas da mente dos homens afetados de inflações parciais e portadores de desajustes perigosos. Se houvera que decidir-me perante estes dois gigantes, eu diria optar pela posição de Wyss em desfavor de Jung [21]. Análise mais detalhada é publicada em 1991: Promove Dieter Wyss uma psicopatologia cultural? Nela resume Azevedo Fernandes: O médico e o seu doente definem, em cada parcela do seu atuar, uma convergência responsável e criativa, tanto quanto possível ética (…). O psicopatologista deixa de se perspetivar na pesquisa dos escaninhos da psique onde o rejeitável se abriga, para ver na psicopatologia processamento de restauro, anda que nem sempre conseguido. Se as premissas estão certas, podemos considerar que Wyss foi promotor duma psicopatologia cultural [22]. Wyss morre em 1994 mas antes havia prometido dedicar ao colega Azevedo Fernandes a que viria a ser a sua última obra Kain: eine Phänomenologie und Psychopathologie des Bösen, (“Caim: uma fenomenologia e psicopatologia do Mal”) que é publicada postumamente em 1997 [23].

Azevedo Fernandes trabalhou várias vezes com o criador do Rêve Éveillé Dirigé Robert Désoille, em Paris e também no Porto, com quem manteve correspondência regular: levei muitos dos meus casos à supervisão de Désoille [27]. A Luz Azul foi o seu primeiro trabalho sobre esta técnica psicoterapêutica. Em 1975, Azevedo Fernandes, publica o livro Psicoterapia de Sonho Acordado, que reflete a sua já então longa experiência na prática e na formação desta técnica.

Mas foi em 1952 com o treino autogénico de Schultz, que Azevedo Fernandes iniciou o seu labor psicoterapêutico (…) porventura a primeira psicoterapia realizada em Portugal [28]. Este caminho foi aprofundado com o estudo de Müller-Hegemann, discípulo de J. Schultz, e com a preferência de Azevedo Fernandes pela psicoterapia autogénica, quase expurgada de doutrinas e de deduções metódicas; tal como a comunicação terapêutica que aprendi e ensinei, também ela se impõe pelos resultados que o cliente inculca [30]. Os escalões fundamental, médio e superior dessa psicoterapia autogénica, no contexto da psicologia organísmica, bem como os resultados que permite obter são descritos em detalhe por Azevedo Fernandes nessa sua última obra, publicada postumamente graças à iniciativa da Direção do Hospital de Magalhães Lemos e à coordenação do Dr José Adriano Fernandes [30]. O Prof. João Barreto considera que os psiquiatras da geração mais jovem, que tendem a utilizar preferencialmente métodos quantitativos de diagnóstico, baseando-se na existência de determinados sintomas, contando mais o seu número que a sua efetiva natureza ou gravidade, só têm a ganhar do estudo dos precursores clássicos dos meados do século XX, e neles inclui Azevedo Fernandes, a sua leitura pode constituir uma salutar oportunidade de crescimento [29].

Assim introduziu Azevedo Fernandes a temática da sua última obra: O Homem (…) sobrecarrega o corpo de muitas maneiras (…) que contrariam a natureza; também sabe demais sobre o futuro ou presume saber e, como assim, aguenta precariamente a réplica do passado. Se por aqui não vem a neurose, é pelo menos caminho paralelo no adoecer neurótico. Treinar a temporalidade e harmonizar o corpo (…), mas para tanto terá o paciente que investir com afã e zelo no encontro introspetivo personalizado e não contaminado com os valores da psique na procura, sem tréguas, da individualidade genuína ascensionalmente vislumbrante [30].

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Autoria de Azevedo Fernandes
  • Azevedo Fernandes (1961). Psicoterapia. Técnica e Clínica. Livraria Lopes da Silva – Porto.
  • Azevedo Fernandes (1968). Neurose e Cura de Relaxamento. Porto Editora Lda- Porto
  • SITIMO – IV Encontro Nacional de Oniroterapia (1974). Azevedo Fernandes, colaboração de Pimentel Neves e Mira Coelho. Imprensa Portuguesa – Porto.
  • Azevedo Fernandes, (1975). Psicoterapia de Sonho Acordado. Livraria Científica-Médica Lda – Porto.

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. a b c d Fernandes, José Adriano- coorden. (1999) – Dr. Azevedo Fernandes – Neuropsiquiatra. Hospital de Magalhães Lemos, Porto.
  2. a b c d Fernandes, José Adriano- coorden. (2015) – Homenagem - Dr. Azevedo Fernandes. Hospital de Magalhães Lemos, Porto.
  3. Fernandes, Azevedo (1977). «Comunicação e Ajuda». O Médico. Vol LXXXIV (1352): 162-169 
  4. Azevedo Fernandes (1999). Apontamentos Pessoais. In: Dr. Azevedo Fernandes – Neuropsiquiatra, p.15-17. Hospital de Magalhães Lemos, Porto