Curandeirismo

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Inganga, um curandeiro xona do Zimbábue

O curandeirismo é prática na qual o indivíduo — o curandeiro ou curador — afirma ter o poder de curar, quer recorrendo a forças misteriosas de que pretensamente disporia, quer pela pretendida colaboração regular de deuses, espíritos etc., que lhe serviriam ou ele dominaria. Nesse sentido, envolve todo um conjunto de "rezas" e práticas de sacerdotes/terapeutas, benzedores, xamãs, pajés, médiums, babalorixás, pastores, bispos, pais de santo, entre outros nomes como tais praticantes são designados a depender da região e cultura local[1][2][3].

Xamã Yupik "a exorcizar os maus espíritos de um menino doente". Nushagak, Alasca, 1890

Curandeiros[editar | editar código-fonte]

O curandeirismo situa-se, portanto, entre duas grandes arenas de discussão: a liberdade religiosa e o reconhecimento pelos órgãos de medicina. Nesse último caso, supõe-se que seu agente, o curandeiro (enquadrado na lei), não possui conhecimento algum da medicina. As curas acontecem por meio da sugestão ou também chamado efeito placebo. [4] [5] O crime relacionado a esta prática, previsto no código penal brasileiro consiste mais na falsidade ideológica (falsificação do diploma e atuação como profissional de saúde) do que no dano à saúde, que pode ocorrer mesmo com profissionais habilitados (ver erro médico) por negligência ou imperícia.

No primeiro caso, apesar da necessidade de controle das práticas religiosas motivadas por desorientações coletivas como a que ocorreu em Jonestown, nas Guianas, na comunidade liderada pelo pastor Jim Jones, e outros exemplos de fanatismo, teme-se repetir tragédias de acusação de Bruxaria na Inquisição, durante a Idade Média. [6] [7] [8]

A título de exemplo do fenômeno em nossos dias, observe-se o processo de acusação de feitiçaria recentemente ocorrido contra crianças acusadas de feitiçaria em Angola: o Governo proibiu 17 grupos religiosos em Cabinda de praticarem rituais perigosos de exorcismo em adultos e crianças acusados de feitiçaria, realizando serviços religiosos ilegais em residências e não estando registrados. Embora a lei não reconheça a existência de feitiçaria, as ações abusivas cometidas na prática religiosa são ilegais. Os membros desses grupos não foram perseguidos, mas 2 líderes condenados por maus-tratos infantis a 8 anos de prisão[9].

A Constituição de Angola consagra a liberdade religiosa e o Governo respeitou este direito na prática; segundo dados do consulado de Angola nos EUA, não houve denúncias de prisões ou detenções por motivos religiosos no país.

Outro exemplo, foi a obrigatoriedade de registrar as Casas de Candomblé, no Brasil, até 1960, por puro preconceito racial e cultural contra os valores das populações escravizadas[10].

Da polícia médica aos conselhos profissionais[editar | editar código-fonte]

São Sebastião a rezar pelas vítimas da peste por Josse Lieferinxe (1497-1499)
Pintura em Vaso grego antigo mostrando um médico (iatros) fazendo uma sangria

Identificam-se três etapas para consolidação da medicina social ou Saúde Pública: a Polícia Médica, especialmente desenvolvida na Alemanha no início do século XVIII, a Medicina das Cidades ou Medicina Urbana, e a Medicina da Força de Trabalho ou Medicina dos Pobres.[11]

Segundo Rosen[12], o termo Medizinichepolizei, polícia médica, foi utilizado pela primeira vez na Alemanha, em 1764, por Wolfong Thomas Rau, em seu livro "Reflexões sobre a utilidade e a necessidade de um regulamento de polícia médica para um Estado". Esse mesmo conceito foi desenvolvido por Johann Peter Frank (1745–1821), System einer vollständigem medicinischen Polizey, "Sistema duma polícia médica geral".

A medicina que se desenvolveu na Alemanha do século XVIII voltou-se para uma intervenção direta na vida, tanto do médico, como do cidadão comum. O controle da profissão médica era realizado através um controle pelo Estado dos programas de ensino e da atribuição dos diplomas e da população através de um departamento especializado para coletar informações transmitidas pelos médicos sobre o estado de saúde da população, também relevantes para controlar a atividade dos profissionais da saúde. (Rosen. o.c.)

Portugal e Brasil[editar | editar código-fonte]

No período colonial, o mesmo modelo de organização dos serviços de saúde, até então vigentes em Portugal, foram transferidos para o Brasil. A estrutura administrativa da Fisicatura era representada pelo Físico-Mor e pelo Cirurgião-Mor do Reino, que, usando de suas atribuições estabeleciam regimentos sanitários especialmente sobre legalização e da fiscalização do exercício da medicina, expediam avisos, alvarás e provisões para serem executadas pelos seus representantes no Brasil.

Em 1782, D. Maria I criou a Junta do Proto-Medicato em substituição à estrutura da Fisicatura. Formada por um Conselho de deputados, essa instituição, também tinha, como objetivo maior, a fiscalização do exercício da medicina e o controle da venda de medicamento.

As práticas médicas da época estava a cargo das Santas Casas de Misericórdias, hospitais militares e os denominados físicos, os cirurgiões-barbeiros, barbeiros sangradores, boticários curandeiros e parteiras.

De acordo com Pimenta a primeira metade do Oitocentos assistiu a mudanças significativas no exercício das práticas terapêuticas.

No fim da década de 1820 e início dos anos 1830, observa-se uma série de marcos no processo de institucionalização da medicina, como a criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e de vários periódicos especializados.

Em 1828 foi extinta a Fisicatura-mor órgão do governo responsável pela fiscalização e regulamentação de todas as atividades relacionadas às artes terapêuticas.

Os curandeiros e os sangradores foram desautorizados, excluídos do conjunto de atividades legais. As parteiras foram desqualificadas para uma posição subalterna e tiveram as suas atividades apropriadas, o que serviu à expansão do mercado para os médicos.[13]

Curandeirismo hoje[editar | editar código-fonte]

Observe-se como assinala Witter[14] que os estudos sobre as práticas de cura, especialmente no Brasil, inicialmente fundamentavam-se nas teorias antropológicas reiteirando as hipóteses evolucionistas que consideravam os curandeiros como feiticeiros e charlatões, justificados pela ausência de serviços médicos e mais recentemente desenvolveram-se os estudos não etnocêntricos e abordagens historiográficas capazes de reconhecerem laços de solidariedade, altruísmo, e mesmo heroísmo, dos que atreviam-se a desafiar o poder associado ao saber hegemônico de sua época. Observe-se também que tais práticas de curandeirismo ainda persistem em sociedades modernas com ampla difusão de serviços médicos[15][16].

Referências

  1. Galvão, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas (Brasiliana v.284). SP, Ed. Nacional, INL, 1976
  2. González-Quevedo, Oscar. Curandeirismo: um Mal Ou um Bem? SP, Edições Loyola, 1976
  3. Araújo, alceu Maynard. Medicina rústica (Brasiliana v.300). SP, Ed. Nacional, 1979
  4. Teixeira, Mônica. Placebo, um mal-estar para a medicina: notícias recentes. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental [online]. 2008, v. 11, n. 4 [Acessado 18 Abril 2023], pp. 653-660. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1415-47142008000400011>. Epub 12 Jan 2009. ISSN 1984-0381.
  5. Aguiar, Fernando. Psicanálise e Psicoterapia: o Fator da Sugestão no “Tratamento Psíquico”. Psicologia: Ciência e Profissão [online]. 2016, v. 36, n. 1 [Acessado 18 Abril 2023], pp. 116-129. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1982-3703004102015>. ISSN 1982-3703.
  6. Lasaga JI. Death in Jonestown: techniques of political control by a paranoid leader. Suicide Life Threat Behav. 1980 Winter;10(4):210-3. doi: 10.1111/j.1943-278x.1980.tb00701.x. PMID: 7008280.
  7. Faco, Rui. Cangaceiros E Fanaticos – Genese E Lutas. RJ: Bertrand Brasil, 1991
  8. Szasz, Thomas S. A Fabricação da Loucura. Um estudo comparativo entre a Inquisição e o movimento de Saúde Mental. RJ: Guanabara, 1971
  9. Embaixada dos Estados Unidos Luanda - Angola. [> Relatório Internacional sobre Liberdade Religiosa, 2007]Acesso Jul.2014
  10. PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estud. av. [online]. 2004, vol.18, n.52 [cited 2014-07-16], pp. 223-238 . PDF Jul.2014
  11. * FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder; Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
  12. Rosen, George. Da Policia Médica à Medicina Social: ensaio sobre a assistência Médica. Rio de janeiro: Edições Graal, 1979.
  13. PIMENTA, 2004 (o.c.)
  14. WITTER, Nikelen Acosta. Curar como Arte e Ofício: contribuições para um debate historiográfico sobre saúde, doença e cura. Tempo, Rio de Janeiro, nº 19, pp. 13-25 PDF Jul. 2014
  15. WILKER, Nikelen A. Curandeirismo: Um outro olhar sobre as práticas de cura no Brasil do Século XIX. Vidya,Vol 19 nº34 Julho 2000. Santa Maria- RS. p.183-197.
  16. REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. SP, Companhia das Letras, 2008